Anne Rice: Bibliografia
Eu não li todos os 36 livros lançados pela Anne Rice. Na verdade, não li metade dessa lista. Mas li 16, incluindo a maioria das Crônicas Vampirescas (ela lançou mais três recentes que ainda não li, embora já tenha adquirido o primeiro) e os das Bruxas Mayfair, mais um ou outro perdido. E achei que seria interessante dar minha opinião sobre a carreira nem sempre estável da autora e quais seus pontos fortes.
O maior legado de sua carreira é definitivamente uma nova visão dos vampiros, que deixam de ser os unidimensionais sugadores de sangue vistos em Drácula, o livro de Bram Stoker do final do Século XIX, e em todos os filmes de Hollywood, do Drácula de Bela Lugosi em 1931 ao de Christopher Lee em 1956, e passam a ser criaturas trágicas, amaldiçoadas pela imortalidade, sensuais e, por que não?, tão humanas quanto nós. Rice abriu as portas para permitir a complexidade dos vampiros concebidos no RPG Vampiro: A Máscara, lançado em 1991 e até mesmo a delicadeza dos criados por Stephanie Meyer na série Crepúsculo, lançada em 2005.
Vampiros podem ser maus e podem ser bons, assim como seres humanos. O que nós, seres humanos, faríamos se tivéssemos toda a eternidade? Essa é a discussão principal das obras de Anne Rice. Ao lançar Entrevista com o Vampiro, em 1976, ela criou um personagem bondoso e sensível, Louis de Pointe du Lac, e um personagem voluntarioso, aparentemente mais mau do que bom, Lestat de Lioncourt, que transforma o primeiro em vampiro e o força a se alimentar de sangue! Esses seres ambíguos e em eterno conflito eram os protagonistas de seu livro, não os vilões. E é exatamente isso o que me atrai. O tipo de vampiro que eu gosto de ler é o concebido por Rice, não o de Bram Stoker.
Outro ponto muito forte de seus trabalhos é a historicidade. Rice nos transporta para o antigo Egito, para a Mesopotâmia, para a Grécia, para a Itália renascentista, para a França moderna, e sempre com habilidade tal que realmente nos sentimos naquele lugar. A ambientação é definitivamente um ponto chave de sua escrita. Eu sinto que conheço uma parte de Nova Orleans sem nunca ter ido aos Estados Unidos, por exemplo.
Sua prosa pode ser considerado por muitos como um pouco verborrágica. De fato, Rice se esmera nas descrições e isso vai aumentando aos poucos, o que pode prejudicar o ritmo de suas histórias, especialmente as menos empolgantes. Mas ela descreve tudo tão bem, com um vocabulário tão rico, que se torna parte integrante de seu estilo, e que funciona quando todo o restante colabora.
Anne, cujo nome de batismo é Howard, uma homenagem bizarra ao seu pai, é também uma ótima desenvolvedora de personagens. São tantos e todos tão únicos, tão vívidos e bem construídos que continuo a me impressionar. O maior exemplo está em O Vampiro Lestat, que talvez seja meu favorito de seus livros, no qual ela desconstrói o Lestat que havíamos conhecido em Entrevista com o Vampiro e o coloca como o centro da trama. E aos poucos o leitor percebe que essas duas representações díspares são, sim, a mesma pessoa. Só é um personagem muito complexo, ambíguo e retratado por dois pontos de vista opostos.
Um último ponto forte é a sensualidade. Como ela começou a carreira em pequenas histórias eróticas e depois escreveu outras sob dois diferentes pseudônimos, imagino que seja um estilo que realmente a agrade. E quando há oportunidade para transmitir essa sensualidade latente de seus personagens, ela o faz. Há alguns livros, como O Vampiro Armand, que contemplam tantas cenas de sexo que podem ser considerados praticamente eróticos em si. E são cenas muito bem elaboradas e que fogem do lugar-comum.
Além do que pode ser considerado um excesso de descrições, o maior problema da bibliografia da Anne Rice é que a qualidade foi caindo ao longo do tempo. A prosa em si continua boa, mas as histórias que ela imaginou vão perdendo o charme. Ainda divertem quem já gosta dos personagens, mas dificilmente cativam novos leitores. Dito isso, vamos às obras!
Antes do que realmente interessa, mencionarei os livros que li que não fazem parte das Crônicas Vampirescas ou das Bruxas Mayfair:
- O Servo dos Ossos, de 1996: li há muitos anos, mais de 15, mas lembro que gostei bastante. É sobre uma espécie de gênio da lâmpada, sendo criado na Babilônia Antiga. A parte histórica é maravilhosa, bem como as ideias por trás da trama. Desconfio que se eu relesse hoje não fosse gostar tanto como na época, mas não sei;
- Vittorio, O Vampiro, de 1999: em 1998 Rice decidiu criar uma série de histórias mais curtas contando as vidas de vampiros isolados. O primeiro foi Pandora, mas como sua história se relaciona muito de perto com as Crônicas Vampirescas, eu considero a obra como parte integral delas. O segundo foi este Vittorio, que é um vampiro completamente desinteressante, que não se integra aos demais personagens e torna o livro um fiasco, o pior que li da autora.
Agora vamos ao que interessa. Eu colocarei abaixo os livros na minha ordem sugerida de leitura, e inserirei a trilogia das Bruxas Mayfair no meio, porque fica melhor ler certos livros das Crônicas Vampirescas se você já conhecer as histórias das bruxas:
- Entrevista com o Vampiro, de 1976: esse é o clássico, e vale muito a pena ler em Português porque a tradução é de ninguém menos que Clarice Lispector. Conhecemos a história de Louis, a crueldade de Lestat, a trágica vida de Claudia e um pouco sobre Armand. O filme de 1994 não é uma má adaptação. Toma suas liberdades, mas é um bom filme. Mas o melhor deste livro é mesmo o estabelecimento das regras que a história viria a seguir daqui em diante;
- O Vampiro Lestat, de 1985: a história de Lestat, desde sua juventude humana aos anos 80, inclusive uma breve recapitulação dos acontecimentos do livro anterior a partir do seu ponto de vista. Armand ganha mais importância, conhecemos também Gabrielle, e, claro, Marius, que é meu personagem favorito. Aliás, o trecho em que Lestat conhece Marius é um dos melhores da carreira de Rice;
- A Rainha dos Condenados, de 1988: conhecemos aqui com detalhes a origem dos vampiros e os personagens são todos reunidos. É uma história rica em detalhes e criatividade e seria meu livro favorito se não fosse a primeira parte, na qual Rice alterna pelos pontos de vista de personagens completamente desinteressantes para que saibamos o que está acontecendo. Quando finalmente conhecemos Maharet e ela conta sua história, aí sim, talvez seja o auge das Crônicas Vampirescas. Também gosto muito da forma como acaba;
- A História do Ladrão de Corpos, de 1992: a Talamasca é uma entidade que observa e cataloga dados sobrenaturais, e um de seus líderes, David Talbot, cruza o caminho da fera indomável que é Lestat, que tem que lidar com a proposta de um ser que quer experimentar como é viver no corpo de um vampiro. É uma história interessante, mas não é dos meus favoritos;
- Memnoch, de 1995: aqui Lestat conhece Memnoch, que é ninguém menos do que o Diabo em pessoa. É uma história razoavelmente isolada das demais, mas eu gosto muito da forma como Rice conduz a trama, como nos conta sobre Memnoch e a impulsividade irrefreável de Lestat;
- Pandora, de 1998: Pandora é uma das minhas personagens favoritas e a acho muito mal explorada por Rice. Este pequeno livro é a chance de conhecermos sua origem e sua relação com Marius e a longínqua Antioquia. O ponto fraco do livro é ser curto e focar muito nesse período da vida dela e pouco nos subsequentes;
- O Vampiro Armand, de 1998: Armand é uma figura trágica, a representação fiel dos ícones da Igreja Ortodoxa. E sua vida tem altos e baixos, mas não deixa de ser fascinante. Eu não gosto muito do personagem, mas gosto de sua história, então é um bom livro;
- A Hora das Bruxas, de 1990: aqui vai entrar a Trilogia Mayfair, mas pode ser em qualquer lugar antes deste ponto, só precisam ser lidos antes do próximo livro vampiresco. A Hora das Bruxas é espetacular, também um de meus favoritos junto com O Vampiro Lestat. A estrutura do livro divide a narrativa entre Rowan Mayfair, uma neurocirurgiã, e Michael Curry, um restaurador de casas antigas. Mas, além destes dois personagens excelentes, o grande trunfo de Rice está na história das Bruxas Mayfair, de sua origem aos dias atuais. É genial! E o final… o que é o final? O cliffhanger do final de O Vampiro Lestat empalidece perto deste. Este livro maravilhoso teve um lançamento dividido em duas partes no Brasil, mas creio que recentemente foi relançado em um único volume;
- Lasher, de 1993: continua diretamente de onde o anterior parou, e vai acrescentando elementos fantasiosos à trama. É bom, mas não tanto quanto o primeiro;
- Taltos, de 1994: o último livro centrado na história das Mayfair, é também o menos interessante. Acho que os dois últimos, embora bons, não são como o primeiro por não serem exatamente centrados em Rowan, que é definitivamente a melhor personagem deste núcleo;
- Merrick, de 2000: voltamos às crônicas vampirescas. Louis conhece Merrick, que é uma bruxa de um ramo bastardo das Mayfair. É um livro bem escrito e até criativo, mas não é dos meus favoritos;
- Sangue e Ouro, de 2001: finalmente Marius tem um livro para chamar de seu, pois é nestas páginas que ele conta sua história, da qual já conhecemos vários trechos por outros pontos de vista. É um bom livro, mas as partes novas da vida de Marius talvez sejam as menos interessantes, de forma que poderia ser ainda melhor;
- Fazenda Blackwood, de 2002: centrado em Quinn, o herdeiro da família Blackwood, que tem um certo poder, e é atormentado por um espírito. Lestat e Merrick se envolvem em sua história para tentar ajudá-lo;
- Cântico de Sangue, de 2003: Rice mistura tudo aqui. Quinn, Rowan, Lestat, está todo mundo junto e pelo fato de eu não me lembrar sequer se gostei de lê-lo, só posso concluir que não é muito marcante.
Cântico de Sangue deveria ter encerrado as aventuras de Lestat, mas em 2014 Rice voltou a publicar novas obras e já são três desde então, que ainda não pude ler. Ela também lançou histórias de anjos, de lobisomens, e até sobre Jesus Cristo.
Por mais que a qualidade venha caindo, ainda é saboroso apreciar a prosa versada de Anne Rice, e seus personagens continuam fascinantes. Eu recomendo fortemente a leitura ao menos de Entrevista com o Vampiro, O Vampiro Lestat, A Rainha dos Condenados e A Hora das Bruxas. Vamos ver se a série de TV que vem sendo desenvolvida pelo filho dela com o Hulu faz jus ao material de origem e traz novo fôlego às suas obras.